Um sistema de transporte público é tão bom quanto seu tempo de espera

Utilizar um ônibus da Transantiago é uma experiência esteticamente pouco prazerosa. Se para você a imagem do veículo sujo, amassado, descuidado, como um velho bandoneón cujo fole está a ponto para lançar suas últimas notas (e já o fez, em algumas ocasiões, em pleno percurso) é ruim, para quem o utiliza é ainda pior.

O que deveria ter sido obra de qualquer um das centenas de bons arquitetos existentes no Chile, terminou nas mãos do Maestro Lucho. Ele foi responsável por apagar, com alguns poucos pesos, um dos muitos incêndios do lançamento da Transantiago em fevereiro de 2007. Armado com ferro, malha soldada, pranchas de zinco e pintura verde, fez aparecer, da noite para o dia, algo parecido a uma estação de transporte público onde antes havia uma casinha resignada ou com sorte, uma banquinha protegida por um teto. As construções do Maestro Lucho seriam provisorias, ajudariam a resistir à tempestade e ganhar o tempo necessário para propor soluções definitivas, a altura de um sistema integrado de primeiro mundo (ou quase).

Já se passaram dez anos de provisoriedade.

Ponto na avenida Manquehue, Santiago. Imagem © Rodrigo Díaz

Nos tempos do antigo sistema, micro-ônibus amarelos paravam em todas as esquinas. De fato, não era necessário que houvesse uma esquina ou uma parada habilitada, bastava a vontade do motorista para encostar em qualquer lugar onde se levantasse uma mão, lucro direto para um condutor cujos ingressos dependiam diretamente da quantidade de passageiros transportados. Isto fazia com que o sistema fosse muito acessível para o usuário, não era necessário caminhar muito para subir em um, mas era extremamente lento devido a quantidade de paradas. Com a Transantiago as paradas foram formalizadas e diminuídas, o que se refletiu no aumento das velocidades comercias, também auxiliado pela implementação de corredores exclusivos ou preferenciais.

Entretanto, a diminuição das paradas trouxe consigo a formação de grandes concentrações de usuários. As estações do Maestro Lucho — não consideradas no projeto original, ou não construídas no momento de sua inauguração — permitiram não só acolher estas concentrações, mas também — mais importante ainda — pagar antes de entrar no ônibus, o que permite o acesso rápido por cada uma de suas portas, com o qual se diminui a velocidade de operação. Além disso, estas estações são a melhor barreira para evitar a evasão de pagamento da tarifa, que a pesar disso, já supera a vergonhosa barreira dos 30% do total de usuários. Em um sistema 100% integrado torna-se muito difícil que todas as paradas sejam cercadas, ou que em todas elas haja um inspetor.

Ponto na comunidade de Providencia, Santiago. Imagem © Rodrigo Díaz

No Metrô, o irmão prodígio do Transantiago, os muros das generalmente cômodas e limpas estações, abrigam obras de famosos artistas chilenos, como Roberto Matta (Estação Quinta Normal), Mario Toral (Moneda) Sammy Benmayor e el Mono González (Baquedano), entre outros. Ao subir para a superfície, aparece toda a miséria do parente pobre do sistema. O ponto do Maestro Lucho é rápido e barato, de alguma maneira cumpre sua função, mas dificilmente constitui uma contribuição ao espaço público. Sua arquitetura é a dos galinheiros, dos matadeiros, das borracharias, mas não a dos espaços públicos. Se os clássicos princípios de Vitruvio são três, venustas (beleza), utilitas (utilidade) e firmitas (firmeza), sua obra só é capaz de se matricular nos últimos dois.

Um estudo de 2012 do Bus Rapid Centre of Excellence estimou que o tempo de espera médio nos ônibus de Transantiago era de 8.2 minutos somando todas as etapas de uma viagem. Outra fonte, esta vez o aplicativo Moovit, marca que o tempo de espera médio alcança os 15 minutos em 2017. Grande parte do tempo morto destas esperas, transcorre nos pontos do Maestro Lucho, que, além de sua pobre arquitetura, mostram a acelerada decadência do mobiliário urbano que não é objeto de manutenção regular. A escassa superfície disponível está pichada, a informação sobre percursos é escassa ou inexistente, assim como as comodidades para os usuários. Sem falar de informação sobre tempos de chegada de ônibus ou amenidades, como acesso gratuito a Internet, tão comum em outras latitudes, mostrando que o sistema santiaguino todavia, está longe de possuir tais gentilezas.

Tratando-se de um sistema único, integrado, não resulta compreensível que existam dois padrões tão distintos, um para as viagens subterrâneas e outro para aquelas que se desenvolvem pela superfície. No momento em que licita-se parte importante da operação do transporte coletivo, seria bom aproveitar a oportunidade para fazer algo ainda mais importante, que é voltar a se preocupar com o usuário de um sistema que não para de perder passageiros.

Ponto em frente ao Costanera Center (Santiago), onde o metro quadrado é mais caro de todo o Chile. Ao menos o assunto é democraticamente mal. Imagem © Rodrigo Díaz

Este cuidado deve ir além do ônibus em si, o que implica repensar os pontos do sistema, não apenas sua imagem, mas também sua funcionalidade. Utilizar máquinas para recargar os cartões, ao menos nas paradas mais importantes, repensar a maneira com que comunica-se com o usuário, disponibilizar Internet gratuita e estacionamentos protegidos aos ciclistas (ou estações de bicicleta pública nas proximidades) são parte dos elementos que deveriam ser considerados em um sistema de alto nível. Sua instalação e manutenção poderiam se concedidas à iniciativa privada em troca de publicidade ou da exploração de pequenos locais comercias, o que aliviaria ao Estado uma tarefa, que, ao menos neste caso, faz francamente mal.

Um sistema de transporte público é tão bom quanto a suas esperas. Quanto mais curtas, melhores, porém durante o tempo de espera, por mínimo que este seja, as pessoas devem ser tratadas com dignidade, como se fossem clientes aos que se deve atrair e não usuários rejeitados. Os pontos do transporte público são parte integrante da paisagem urbana, configuram o espaço público no qual muitas pessoas permanecem longos períodos ao longo da semana. Seu desenho não pode obedecer a improvisação nem a carência, não pode tratar-se como um problema, mas como uma oportunidade para enriquecer as ruas, criando lugares de encontro e comunicação — aqui deixo EyeStop, um protótipo de ponto desenvolvido faz alguns anos pelo SENSEable City Lab do MIT, como para abrir o apetite—.

Nada pessoal com o Maestro Lucho e suas obras, mas para um sistema de transporte de alto nível, a responsabilidade de desenhar a maneira com que interagimos com as ruas e seus sistemas de transporte, deve ir parar em outras mãos.

Ponto na comunidade La Cisterna, Santiago. Imagem © Rodrigo Díaz
Sobre este autor
Cita: Díaz, Rodrigo. "Um sistema de transporte público é tão bom quanto seu tempo de espera" [Un sistema de transporte público es tan bueno como sus esperas] 19 Ago 2017. ArchDaily Brasil. (Trad. Libardoni, Vinicius) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/877879/um-sistema-de-transporte-publico-e-tao-bom-quanto-seu-tempo-de-espera> ISSN 0719-8906

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